Existe uma grande mobilização de estudos no meio filosófico cujo objetivo é confrontar e definir os possíveis limites entre modernidade e pós-modernidade. Na verdade, após a explosão do termo nos anos 90, começamos a questionar a própria existência de uma pós-modernidade, já que para muitos pensadores, o que estamos vivenciando seria apenas uma crise da modernidade. O que pode vir após essa crise, não sabemos; mas dizer que já estamos neste “pós”, parece um pouco exagerado. Se bem que, convivendo grande parte da vida com jovens totalmente imersos nesse século, mesmo não sendo muito mais velho que eles (sic), percebo que a organização de suas formas de vida parece ser bem diferente daquelas que vivi. Vemos assim que o tema realmente coloca sérios problemas de interpretação e definição.

Tudo indica que, para tentarmos estabelecer alguma coisa sobre a qual podemos refletir, precisamos começar pela definição do sentido e significado de modernidade. A princípio, podemos identificar a modernidade com o ideal de independência do ser humano em relação a estruturas que moldam suas opiniões e visões de mundo. Essa independência foi declarada já no alvorecer da modernidade, quando nossos brilhantes cientistas Nicolau Copérnico, Galileu Galilei e Johannes Kepler viram nos astros nada mais que esferas cósmicas que se organizavam de acordo com leis naturais, dando início a tradição científica que nos presenteou com Isaac Newton, Albert Einstein, Edwin Hubble e Carl Sagan.

Outro flanco dessa declaração de independência foi declarado por René Descartes que, ao colocar em dúvida todo conhecimento prévio e estabelecido, colocou a mente humana como centro do seu universo de pesquisa. Nesse sentido, mesmo que tenham existido grandes polêmicas entre racionalistas e empiristas ao longo dos séculos XVII e XVIII, a pergunta de fundo continua a mesma: como nós, indivíduos da espécie humana, construímos nosso conhecimento acerca da realidade? A resposta progressivamente se libertou de qualquer amarra ou dependência ao ser sobrenatural, até que a “Revolução Copernicana” de Immanuel Kant nos coloca definitivamente na perspectiva de “ser no mundo”, com todas nossas limitações e capacidades.

Esteticamente, a independência moderna liberta o artista dos grilhões estéticos da “bela arte”, dando um maior valor à obra como expressão de uma realidade interna, uma expressão do eu no seu choque com o mundo objetivo, mostrando que esse choque é também traumático e dolorido.

A declaração de independência do ser humano também se fez sentir em questões de ordem política e econômica. É inegável o avanço que a empresa individual representou em relação ao sistema feudal, o que acabou desembocando na revolução industrial caracterizada pela organização do trabalho e aliança com a tecnologia na busca do aumento de produção e da geração de riqueza. Essa mudança do sistema econômico forçou também a mudança do sistema político, que não poderia mais estar nas mãos de uma nobreza e de um clero sustentado por estruturas abstratas não mais condizentes com a realidade moderna.

Toda essa Luta, essa busca pela independência, foi levada ao extremo e representada de maneira exemplar pelos filósofos do período conhecido como Iluminismo. Talvez seja lícito dizer que a filosofia iluminista (e todo ideal da modernidade) possa ser resumida na seguinte frase de Kant:

“Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. Tal menoridade é por culpa própria, se a sua causa não residir na carência de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo, sem a guia de outrem”.

Esta é a declaração de independência da modernidade.

Mas como toda forma de ver e entender o mundo, ela também tem suas consequências. Vamos então passear pelas críticas desenvolvidas à modernidade, baseada nas consequências negativas que observamos na realidade e que podem ser relacionadas justamente a essa transformação da ótica do ser humano.

A primeira e mais evidente delas é que, ao tentar se livrar de um dogma (no caso o dogma religioso que por séculos estabeleceu os parâmetros da ideologia dominante no mundo ocidental), a modernidade acabou por criar um outro conjunto de ideias, que acabaram sendo naturalizadas e consideradas como inquestionáveis. Dessas ideias, a que prevalece como ideia básica de todo sistema capitalista é a de que podemos (e devemos) buscar o crescimento econômico sempre positivo e tendente ao infinito. Isso porque, quando tornamos a economia independente de qualquer controle externo (o rei e sua nobreza no Estado absolutista, e do controle governamental no Estado liberal) se pressupõe que os atores do processo econômico podem (e devem) buscar o lucro como objetivo primordial de sua atividade.

Essa busca cega pelo lucro vem gerando uma série de problemas ao longo da modernidade. Na época do capitalismo industrial, consolidado em meados do século XIX e modelo organizacional prevalente até os anos 70 do século XX, assistimos ao processo de urbanização radical da sociedade e da massificação dos trabalhadores dentro da categoria do operário assalariado. A ideia do lucro a qualquer custo gerou o processo de exploração dessa massa de trabalhadores, condenados a situações de total falta de infra-estrutura, em moradias precárias, sem saneamento, esgotados por longas jornadas e oprimidos por salários baixissimos. A melhora das condições de vida para essa massa de trabalhadores só é alcançada a partir da luta e organização em sindicatos e partidos fortes o suficiente para pressionar essas melhoras. Isso, porém, só foi alcançado nos países centrais do capitalismo mundial, já que em grande parte dos continentes americano, africano e asiático, as condições de vida e trabalho são ainda inferiores àquelas de Londres na virada do século XIX para o XX. Atualmente, com o processo de globalização da economia, acompanhado da ideologia neoliberal de total independência dos negócios em relação a governos e Estados, assistimos à concentração ainda maior de riqueza na mão de apenas algumas grandes companhias e investidores (com seus satélites mais ou menos estáveis nas economias locais) com a consequente pauperização de populações ainda maiores no planeta.

Além do problema humano, temos também o problema ambiental. Estamos caminhando inexoravelmente rumo ao esgotamento de todos os recursos naturais e a própria incapacidade de sobrevivermos em nosso planeta. O sistema baseado no lucro positivo e tendente ao infinito promove a necessidade de circulação e descarte cada vez mais rápido de bens de consumo, apoiado numa matriz energética que não abre mão dos combustíveis fósseis. Essa conjunção de fatores já devastou imensas áreas do planeta, em terra ou em oceanos, causando a extinção de espécies e a precarização ainda maior da vida de milhares de pessoas. Hoje, populações inteiras não têm acesso à água potável. A terra esgotada se nega a produzir. Agrotóxicos, fertilizantes e experiências genéticas vem deixando um rastro de morte e sofrimento. Vivemos, todos, em meio a poluição de terra, ar e água em todo o globo terrestre.

No âmbito da política temos a consolidação do modelo democrático representativo como forma substitutiva à monarquia absolutista. Até sua consolidação, este modelo passou por diversas formas, que sempre se mostraram controladas pela burguesia capitalista no intuito de restringir a participação popular (ou de seu representantes) nas assembleias e câmaras de governo. Mais uma vez, foi somente através de muita luta por parte dos trabalhadores que o sistema foi aberto à participação universal. Exemplo disso foi a grande e longa luta das mulheres para conquistarem o direito de participar da política1 . Após a explosão de regimes autoritários na Europa e sua derrota na II Guerra Mundial, o regime democrático representativo se estabilizou no centro do capitalismo mundial, pois conseguiu equilibrar a manutenção dos interesses da elite burguesa com as políticas públicas de apoio à classe trabalhadora que caracterizaram o Estado de Bem Estar Social. Na periferia do sistema, porém, foi sentido o risco de eleição de governos plenamente identificados com a classe trabalhadora, obrigandso assim ao apelo a regimes totalitários sustentados pelas grande potências capitalistas. Mais uma vez, com o processo de globalização neoliberal, a economia torna-se, de certa forma, independente de qualquer tipo de governo, ou melhor, os atores econômicos tornam-se mais fortes do que qualquer tipo de governo, fazendo com que a democracia liberal representativa possa se tornar o modelo padrão em praticamente todo o mundo.

Por fim, toda a diversidade cultural da humanidade tem sido substituida pelo padrão difundido internacionalmente pela indústria cultural. A mesma tecnologia que possibilita a comunicação instantênea entre pessoas de todo o mundo, também é responsável pela concentração cada vez maior dos meios de comunicação nas mãos de algumas grandes corporações. Essa concentração possibilita uma padronização do gosto e difusão das necessidades de consumo em escala planetária, o que vem a beneficiar justamente as gigantes companhias de produção de bens de consumo.

Vemos assim, que ao longo da modernidade, aquilo que antes representava a independência a um modelo antigo e atrasado, a uma ideologia totalizante e anacrônica, acabou por se tornar ele mesmo um dogma ideológico. Hoje este dogma não está mais nas igrejas, ele está nas salas de conferência de Davos, Bruxelas e Nova Iorque. Este dogma não semanifesta mais em sermões, mas nos impulsos que recebemos constantemente através de nossos aparelhos de comunicação.

Mas isso não quer dizer que o ideal Iluminista esteja morto e enterrado. Confundir a modernidade com o Iluminismo parece ser um erro que muitos pensadores têm repercutido sem repercutir no verdadeiro significado de cada um deles. Sim, o movimento iluminista propiciou o surgimento e desenvolvimento da modernidade, mas isso não significa que ele seja a modernidade. Vamos voltar às duas frases de Kant sobre o Iluminismo:

“Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem”.

Hoje, mais do que nunca, temos a obrigação de buscar o entendimento SEM A ORIENTAÇÃO DE OUTREM. Temos que buscar um conhecimento independente daquilo que nos é repetido constantemente pelos meios de comunicação. Um conhecimento independente do falso conforto que a sociedade de consumo nos proporciona. Um conhecimento independente da falsa noção de independência que o trabalho moderno nos dá.

É por isso que não acredito que estejamos ainda na pós-modernidade. O próximo estágio da humanidade não é a crise da modernidade, mas a superação dessa crise através de um novo Iluminismo que nos liberte mais uma vez dos dogmas que nos oprimem.

Viveremos e alcançaremos essa superação? Bem, essa é uma outra história….

1 Sempre lembramos aqui a grandiosa Antonieta de Barros, primeira mulher, negra, eleita como deputada em Santa Catarina, no ano de 1934.

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